Perseguindo o Amanhecer - Ricardo Lugris

19/10/2015 - Chiang Mai

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Há certos dias na vida e sobretudo em qualquer viagem, onde temos a impressão que nada dá certo, nada funciona. Afortunadamente, esses dias são pouco frequentes, mas eles existem.
Após dois dias visitando a bela capital do norte da Tailândia, Chiang Mai, seus fabulosos templos, sua história carregada de poder, glória e decadência, entregue hoje a um intenso turismo que combina o exotismo peculiar da Tailândia, com atividades ao ar livre.
Aqui se percebe a procura pelo turista ocidental de um sentido à sua própria existência através de meditações e contato com Lamas, Gurus e Monges, além da descoberta do mundo relacionado com a vida selvagem e doméstica do sempre imponente, poderoso e terno elefante, figura presente no imaginário de todos nós, desde os tempos de Dumbo.
Decido permanecer mais um dia para visitar a região no entorno de Chiang Mai, porta de entrada para uma grande região montanhosa que se estende do norte da Tailândia através do Mianmar, do Butão e Índia, até o platô do Tíbet, berço e pátria maior do Budismo.
Instalado em um confortável hotel com jeito de pousada de Ilhabela, construído em termos rústicos e muita madeira e perfeitamente inserido em um contexto de verdura e tranquilidade, percebo que é muito fácil se deixar levar pelo conforto e pelas facilidades deste país.
Tudo funciona. Servicos, facilidades e o cotidiano, aparentemente em uma ordem nem sempre compreensível para nós, seres acostumados a uma lógica ocidental, mas que ao final se encaixa serena e tranquilamente, como se fizesse parte de uma grande engrenagem.
Assim, deixando a bagagem no hotel, e na recomendação de meu guia turístico, decido visitar uma cidade de nome simpático, Pai, localizada a 150 km mais ao norte, já em região de montanha.
A estrada que leva até essa pequena localidade é mencionada no meu guia como bela e super interessante para um passeio de motocicleta (sic).
O aluguel de pequenas motos e scooters é prática comum pelos turistas na Tailândia, apesar da complexidade no trânsito e de que ninguém usa capacete por aqui.
Pego a Mobilete e percorro os primeiros 40 km por uma autoestrada que não tem nada de atrativa até que chego à intersecção com o caminho que me conduzirá a Pai.
Poucos quilômetros depois, iniciam-se trechos de obras que continuarão pelos próximos 120 km em um mundo de poeira, cascalho, areia, circulação alternada e um risco desmesurado (e desnecessário) pois alguns motoristas insistem em forçar a passagem com seus grandes e potentes 4x4.
Com a impressão de que as obras da estrada não podem durar mais do que alguns quilômetros, vou avançando até que acabo por chegar à cidadezinha de Pai, localizada em um belo vale, obviamente rodeado de montanhas.
Com um certo ar de turismo alternativo, místico e ecológico, vejo pelas ruas muitos jovens europeus vestidos um tanto quanto à moda hippie de 50 anos atrás. Cada um procura seu nirvana onde puder...
Coberto de poeira, resultado das inesperadas obras da estrada, faço uma pausa antes de retomar a mesma e única via de retorno à Chang Mai.
Estaciono a moto em frente a um bar-restaurante simpático e conveniente, para uma Coca-Cola e um sanduíche.
Aqui, parodiando meu último post, enquanto espero por meu almoço no interior do restaurante, alguém, com um sorriso em seu rostro e com gestos suaves e delicados como é peculiar na Tailândia, "aliviou-me" de minha câmera fotográfica na valise da moto.
São esses momentos de vacilo que qualquer turista vai ter, cedo ou tarde, e que oportunistas rondando lugares frequentados por estrangeiros saltam à primeira chance.
Estou viajando há 80 dias e sempre mantenho uma forte dose de vigilância a tudo o que me pertence.
Sou distraído e confiado por natureza, daí a necessidade de cuidado redobrado, sobretudo viajando sozinho.
Em todas minhas valises e bauletos há um pequeno cadeado, incluindo a bolsa de tanque, onde normalmente carrego itens de uso cotidiano, como óculos, canivete, lanterna, guias e câmera fotográfica.
Na chegada ao restaurante de propriedade de um francês e primordialmente frequentado por estrangeiros, esqueci meus óculos de grau na moto.
Voltei para buscá-los e devo ter deixado a bolsa do tanque de combustível não só sem cadeado, mas também entreaberta onde se percebia a alça da câmera fotográfica.
Assim, como a ocasião faz o ladrão, alguém deve ter aproveitado uma muito fácil oportunidade, presente deste turista confiado e desavisado.
Apenas percebo uma hora depois de deixar o restaurante , quando já de retorno pela estrada infernal, faço uma pausa para uma foto da paisagem e não encontro o aparelho na bolsa.
Mais uma lição a ser retida nesta longa escola da vida.
É preciso estar atento em 100% do tempo, em qualquer lugar, independentemente da simpatia e amabilidade dos locais.
Após mais 3 horas de estrada em obras, sentindo-me um tanto quanto otário por ter dado chance a um espertinho, chego à grande Chiang Mai, às 17 h, com 35 graus de temperatura e para apanhar o trânsito de final de tarde de sábado onde todos seus habitantes se movimentam em intermináveis feiras e mercados tradicionais em preparação para o fim de semana.
Cruzo por um centro comercial e decido comprar uma nova câmera fotográfica, melhor que a outra, para não mais pensar no assunto.
Um reparador e refrescante mergulho noturno na piscina do belo hotel e uma curta e agradável conversa com um casal de brasileiros também hospedados ali, recuperam um pouco meu ânimo e me fazem esquecer as agruras do dia.
Cedo ao cansaço e me recolho para uma tranquila leitura em meu quarto até que o sono chega por gravidade.
Sou acordado pelo vizinho, um holandês, no apartamento do lado às 3h da manhã, falando em um tom de voz altíssimo seu idioma com aquelas dissonâncias predominantemente gutural que fazem dessa língua uma das mais feias da Europa, e sobretudo no meio da noite!
Como a conversa continuava em frente à porta de meu apartamento, abro e peço a ele que faça silêncio, pois é tarde.
Com uma garrafa de cerveja na mão, evidentemente alcoolizado e seguramente com o seu fuso horário trocado, o holandês não aprecia de fato minha observação e se irrita, com razão, segundo ele. Quem sou eu para lhe chamar a atenção? Ele está de férias e pode fazer o que quiser.
Fecho a porta de meu quarto e constato que, apesar da reação negativa, o meu vizinho faz um relativo silêncio e eu consigo, a duras penas, voltar a dormir.
Tenho a impressão que o "mau dia" estava durando demais.
De manhã cedo, resisto à vontade de fazer muito barulho com a certeza que o "bebum" da noite anterior estaria agora nos braços de Baco e Morfeu, um de cada lado, e sobretudo, resisto à tentação de jogar na rua o par de tênis que ele deixou do lado de fora do seu apartamento.
Confesso que a tentação foi bem grande...
Dando um toque zen ao meu estilo, esqueço o assunto, e carrego a moto para continuar minha viagem em direção ao norte, antes de partir para a fronteira do Laos, meu próximo destino.
Nesse domingo de sol e de 29 graus já às 7:30 da manhã, antes mesmo de deixar Chiang Mai, em um dos movimentados semáforos, vejo que alguém, com uma bela KTM 1190, nova e limpíssima, quando comparada com minha moto, se posiciona ao meu lado.
Um jovem tailandês, me sorri (evidentemente) e faz as perguntas de praxe: De onde vem e para onde vai?
Digo que sou brasileiro, venho desde a França e que estou indo para o norte, para entrar no Laos e percorrer ao longo do rio Mekong, até o Camboja.
Ele me diz que está indo fazer um passeio dominical com amigos motociclistas na região do norte, junto a fronteira da Birmânia.
Em seguida, me convida para um café no posto de gasolina onde marcou encontro com seus amigos.
Concordo, e seguimos por uns 10 km onde posso perceber sua maneira correta e cautelosa de conduzir a moto.
Há uma grande diferença na Tailândia entre o milhão de motos de 50 a 100cc, que constituem como o pricipal veículo utilitário do país e as poucas motocicletas de maior cilindrada existentes, obviamente conduzidas por alguns poucos individuos economicamente privilegiados já que os impostos de importação aqui tornam essas grandes motos quase proibitivas.
Os verdadeiros motociclistas, apesar do forte calor, andam sempre equipados da cabeça aos pés, o que não é o caso daqueles circulando em pequeninas motos, de chinelos, bermudas, sem capacete, com bebês no colo e outras barbaridades.
No posto de gasolina me apresento a meu novo amigo, Pop, e seus dois parceiros, Jazz, com outra KTM 1190 e Inunn, em uma BMW GS 800.
Eles me convidam para fazer o passeio com eles que se terminará em um almoço em um restaurante nas montanhas.
Um típico domingo entre amigos. A idéia me agrada enormemente. Agradeço a companhia e a confiança.
De alguma maneira, se eu me deixar imbuir pelo espírito da filosofia oriental, a vida é de toda evidência, constituída de pequenas compensações.
O que foi de negativo o dia anterior, começa a se mostrar opostamente positivo neste domingo em um feliz encontro totalmente imprevisto e razoavelmente inesperado.
Os três jovens amigos me conduzem por pequenas estradas de paisagens magníficas, ao longo da fronteira com o Mianmar, antiga Birmânia, país ainda totalmente fechado aos veículos estrangeiros.
Não pude, infelizmente, visitá-lo pois seria necessário um depósito importante em dinheiro como caução pela moto, sem garantia de recuperação desse valor.
Os caminhos de vales e montanhas que me mostram os amigos Tailandeses são dignos de mencionar na lista das melhores e mais bonitas estradas do mundo.
Eles conduzem bem suas motocicletas, com velocidades coerentes com a qualidade e traçado dessas sinuosas e técnicas estradinhas de montanha.
Em alguns lugares, subimos a cotas de mais 1700 metros de altitude e podemos aproveitar temperaturas de 23 graus quando há meia hora apenas tínhamos 33 graus indicados no painel da moto..
O entusiasmo e parceria mostrado por esses jovens em poder me fazer conhecer um pedacinho de seu lindo país é comovedor.
Sou convidado para um chá em um mirante de onde podemos avistar a Birmânia.
Somos recebidos em uma base avançada do exército da Tailândia que se encontra em uma colina exatamente na fronteira com o Mianmar.
O capitão, comandante desse destacamento nos leva para conhecer a linha de defesa e a demarcação dessa fronteira, nem sempre amistosa, e faz questão de fazer fotos sobre minha moto, e conosco.
Nosso passeio finalmente nos leva a um restaurante chinês onde supostamente almoçaremos algumas iguarias daquele país milenar.
Nos é servida uma sopa onde uma série de carnes é superposta, enquanto os legumes e o caldo são acrescentados à medida em que se vai consumindo a tal da sopa.
O todo é acompanhado de um delicioso e quentíssimo molho de pimenta, obviamente. Tudo é apimentado por aqui.
Sirvo-me da sopa e encontro no fundo uma carne de cor preta.
Pergunto o que é, sem muita convicção de que quero saber...
Um dos amigos me responde que é "galinha preta".
Bem, eu já comi galinhas de penas de todas as cores e nem por isso a ave adquiria a cor de suas penas...
Nesse momento, provando a carne noto algo estranho.
Ou essa galinha tem espinhas como um peixe, ou eu tenho a haste de uma pena na boca...
Decidi não perguntar mais nada. Preferi não saber e não queria, em hipótese alguma, parecer rude.
Simplesmente evitei as carnes pretas e continuei curtindo a sopa e seu molho apimentado pois, além de tudo, era convidado.
Terminamos o almoço ao mesmo tempo que que se armava uma forte chuva.
Estamos no final da estação das monções e é normal haver ainda aguaceiros no final da tarde.
Assim, esperamos por uns 45 minutos até que o mau tempo tropical se dissipasse e tomamos o caminho para a via principal.
Nossa despedida foi junto à estrada que levaria meus parceiros de uma jornada a Chiang Mai, onde residem, e a mim, para o norte, em direção à fronteira com o Laos, para onde pretendo cruzar no dia seguinte.
Feliz com o dia que me foi brindado de forma inesperada por gente amável e despreocupada, não pude evitar de sentir - me, nesse momento de despedida, um pouco só.
Volto a ser um motociclista em solo, o que tem suas vantagens na maior parte do tempo mas, reconheço, que uma balada de domingo com amigos é de um valor inestimável para a a alma e para o coração.
Sou grato a esses três motociclistas tailandeses por sua desprendida generosidade e sobretudo pela confiança.
Algo que seguramente, só a moto aporta.
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