Perseguindo o Amanhecer - Ricardo Lugris

22/08/2015 - Periferia proletária de Krasnoyarsk

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Um tanto quanto desorientado, acordo "por gravidade" no pequeno porém decente Hostal onde fui deixado pelos ruidosos motociclistas na noite anterior na periferia proletária de Krasnoyarsk, uma cidade dinâmica, intensa e industrial encravada em plena Sibéria Oriental.
Um pouco desajeitado, reorganizo minhas coisas, despeço-me dos funcionários que reforçam o fato de que não tenho que pagar a noite e mostram-se surpresos que eu parta tão rapidamente.
Posso finalmente , com a luz do dia, visualizar meu entorno, um bairro, com prédios uniformes e decadentes, bem ao estilo do regime comunista, do tipo que abrigava os proletários, base e sustento do regime que perdurou por mais de 70 anos, modificando vidas e mentes de forma tão intensa.
Minha moto ficou em um estacionamento público, em um terreno baldio.
Tenho um recibo no bolso que me faz sorrir.
Um pedaço de papel com uma assinatura e um carimbo, contra uma BMW.
No estacionamento, o guarda não tem uma perna.
Pela idade, mais ou menos a minha, vejo que deve ser um veterano da guerra do Afeganistão, terrível para os Russos ao final dos tempos da União Soviética.
Até hoje, ninguém ganhou uma guerra no Afeganistão.
Há muitos mutilados como ele nos semáforos e esquinas da Rússia e o novo governo não assumiu a responsabilidade pelos atos do regime anterior. Precisam mendigar para sobreviver. Uma vergonha.
Dobre Utra! (N. do T. : Bom Dia!), digo eu, ao mesmo tempo que mostro o papel que vale uma moto.
Ele me responde ao cumprimento e me faz un gesto de "pode continuar".
Deixei a moto as 2h da manhã em um canto do "parking" e não percebi que o lugar, de terra, estava em inclinação.
Tenho que fazer recuar a moto carregada, pendente acima.
Por razões óbvias, não posso pedir ajuda ao guarda do estacionamento... situação ridícula.
A única maneira é, reunindo toda minhas forças, puxar a moto uns centímetros de cada vez.
Levo uns 10 minutos, sob o olhar impotente e solidário do veterano de guerra.
Agradeço, em qualquer caso e em pensamento, sua discreta simpatia.
Dirijo-me ao centro da cidade com seu povo ansioso e apressado chegando para o trabalho, são 8:30 h.
Semblantes fechados, preocupados, as pessoas dirigen-se para suas obrigações cotidianas.
Eu, sinto-me, sem culpa, um belo vagabundo e me instalo em um café para meu desjejum e, por Internet, poder contactar Konstantin e Anna, um casal amigo de amigos, que deve ter organizado minha reserva de hotel e a revisão de minha moto na BMW de Krasnoyarsk.
Os próximos dois dias serão de organização pessoal para o correto prosseguimento desta longa viagem.
A moto precisa fazer a revisão dos 50 mil km.
Curioso, a Mobilete já é uma "cinquentona" com apenas 15 meses de uso. Acho que viajei com uma certa abundância em um pouco mais de um ano.
Em poucos minutos, Konstantin, o principal executivo de uma companhia aérea russa em Krasnoyarsk com quem tenho relações de amizade, vem a meu encontro e me acompanha ao hotel que reservou.
Um 4 estrelas, com preço descontado, me permite as facilidades para estabelecer a faxina pessoal que preciso hoje.
Mando lavar minha jaqueta e calça de moto que já mostravam sinais olfativos evidentes de três semanas de poeira, barro, insetos, fuligem, suor e sangue.
Também mando lavar algumas peças de roupas e, uma vez feito isso, consigo com o gerente do hotel um lugar com um compressor para poder dar uma ducha completa na moto para que ela esteja apresentável no concessionário BMW no dia seguinte.
Ao final da tarde, Konstantin e sua esposa, Anna, passam, como perfeitos anfitriões, para levar-me a um restaurante e jantamos com a sincera disposição de criar uma nova amizade.
No concessionário BMW, o último na Russia, na direção que sigo, tudo se passa como previsto e deixo a moto para a revisão e a troca de pneus, instalando o jogo que trouxe na moto desde a França.
Estou satisfeito de poder reduzir o peso na traseira da GS pois, daqui para frente, as estradas serão gradativamente mais deterioradas e o trânsito bem mais agressivo e difícil.
Konstantin passa pelo concessionário para levar-me a fazer um tour pela cidade.
Visito, sem lhe mencionar, os mesmos lugares que visitei na noite em que cheguei a Krasnoyarsk com os motociclistas. Interessante e curioso poder ver novamente esses pontos de interesse sob a luz do dia, quando eu os tinha conhecido à noite.
Desde a colina que domina Krasnoyarsk e onde está instalado um canhão Horowitzer que dispara (balas de festin) todos os dias ao meio dia, pontualmente.
Essa tradição marca a fundação da cidade pelos cossacos em 1637. E o povo, de maneira um tanto quanto abrupta, sabe quando é meio dia...
Capital da Sibéria Oriental, desde essa mesma colina pode - se perceber, sobretudo no verão, o nível elevado de poluição ambiental provocado pelas indústrias situadas na parte norte da cidade.
O rio Yesemei, em cujas marges foi instalada Krasnoyarsk, a partir de um pequeno posto militar, é um dos maiores da Rússia. Com ilhas e parques em suas margens da um aspecto agradável e convivial ao centro da cidade.
Após o instrutivo e ilustrativo passeio pela cidade, Konstantin, que apesar do limitado inglês, compensa largamente em simpatia e amabilidade, deixa - me na BMW para que eu possa recuperar a minha "duas rodas".
Encontro a moto irreconhecível.
Ela foi lavada ao ponto de parecer nova.
Penso que vou parecer um "coxinha" amanhã com a moto e as roupas tão limpinhas.
As pessoas vão perguntar se fiz os 9000 km desde París, de avião...
Tudo se passa bem, a moto tem novos "sapatos" e o preço da revisão ficou em um 50% do que eu pagaria na França. Bom negócio. Posso trazer a moto aqui a cada revisão.
No concessionários encontro Damien, um franco-canadense, viajando com uma GSA e side-car, e estabelecemos uma boa conversa.
Apresentadas as credenciais de experiência, (ele está viajando a dois anos pelo mundo), celebramos a coincidência de que vamos ambos na mesma direção até Irkutsk, junto ao grandioso lago Baikal, a 1000 km de distância. Dalí, ele segue para a Mongólia.
Também coincide o fato de que viajaremos na mesma manhã. Assim, decidimos fazer esse trecho juntos.
Mais um jantar com meus amigos e anfitriões russos marca o final de minha curta, porém necessária estada em Krasnoyarsk.
No menu, uma intensa e acalorada discussão sobre a política atual referente à Rússia, a situação da Ucrânia, e a visão da Europa e do mundo, em relação ao posicionamento politico e estratégico russo atual.
Como toda discussão política, os pontos de vista eram bastante divergentes, sobretudo o meu, e o dos nativos.
Fiquei verdadeiramente surpreso em constatar que os russos se sentem genuinamente ameaçados por uma crescente presenca da OTAN em torno de suas fronteiras e daí, segundo eles, a "reação" de se proteger.
Brinquei que nunca pensei que os russos, um dia, viriam a ser "reacionários"... E tudo terminou em vodka!
Cedinho, no dia seguinte, sempre com um sol maravilhoso e uma temperatura agradável de 23 graus, após as fotos de praxe com as funcionárias do hotel, peguei a estrada para encontrarme com meu novo amigo, Damien, e seu side-car.
O Baikal, maior é mais profundo lago do mundo, não será mais o mesmo depois de me conhecer.
E faço girar o motor da Mobilete que ronrona com perfume de revisão eslava. Cheira à vodka, ou serei eu?

Ricardo Lugris
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